Atrás A democracia não pode sacrificar a vida privada para proteger a saúde

Expresso, 29/04/2020

"Há exemplos inquietantes na Europa", alerta a comissária do Conselho da Europa para os Direitos Humanos. "A tecnologia também virar-se contra nós quando se imiscui na nossa vida privada e limita a nossa capacidade de participar na sociedade."

A pandemia de Covid-19 já matou mais de 200 000 pessoas em todo o mundo, mais de metade das quais morreram nos últimos dois meses na Europa. Basta olhar para estes números para compreendermos as razões que levaram os governos a tomar medidas extraordinárias, tais como o confinamento obrigatório e a quarentena. Estes esforços estão a dar frutos promissores. Agora que alguns governos estão a aliviar gradualmente as restrições, é vital que assegurem que as medidas muito restritivas adotadas até ao presente não se prolonguem para além do período de emergência sanitária.

A questão da vigilância ilustra bem este princípio. Muitos países europeus estão a recorrer a dispositivos digitais para ajudar a aplicar as medidas de quarentena, seguir a progressão da infeção ou informar as pessoas que possam ter estado em contacto com portadores do vírus. O objetivo é reforçar a capacidade para conter a propagação do coronavírus, reduzindo assim a pressão exercida sobre o sistema de saúde e permitindo aos hospitais retomar os serviços e intervenções cirúrgicas que foram adiados devido à pandemia. As possibilidades oferecidas pelas ferramentas digitais merecem portanto ser exploradas. O imperativo sanitário não deve, contudo, dar carta branca aos governos para espiar os seus cidadãos. A aplicação de tecnologias digitais no domínio da saúde deve ser contrabalançada pelo respeito pela privacidade.

A conceção, desenvolvimento e utilização das tecnologias digitais acarretam de facto implicações éticas e jurídicas que não podem ser ignoradas. Se é certo que estas tecnologias podem melhorar a nossa qualidade de vida – nomeadamente permitindo uma saída menos perigosa e mais rápida da atual situação de confinamento –, melhorar a resposta a ameaças de saúde pública, reforçar a responsabilização e abrir novas oportunidades em muitos setores essenciais da vida como o dos cuidados de saúde, elas podem também virar-se contra nós quando se imiscuem na nossa vida privada e limitam a nossa capacidade de participar na sociedade.

Este risco já se concretizou em vários países europeus.

Na Rússia, o governo utilizou câmaras de reconhecimento facial para impor o cumprimento das ordens de quarentena, sem garantias suficientes de que estes métodos intrusivos não serão generalizados para outros fins. No Azerbaijão, os cidadãos têm que enviar informação sobre as suas deslocações por SMS a um sistema eletrónico, permitindo assim potencialmente à polícia rastrear os seus movimentos. No Montenegro, o governo publicou no seu sítio web uma lista com os nomes e moradas das pessoas obrigadas a isolarem-se durante 14 dias após regressarem do estrangeiro, para as dissuadir de infringir esta ordem.

Na Polónia, as pessoas em quarentena têm que descarregar uma aplicação de smartphone obrigatória fornecida pelo governo e tirar selfies com registo de data e hora, bem como das suas coordenadas GPS, várias vezes ao dia, para provarem que estão a respeitar a ordem de quarentena. Qualquer incumprimento desta obrigação pode resultar na intervenção da polícia e numa multa pesada. A Turquia anunciou também a adoção de uma aplicação de smartphone similar obrigatória para seguir a localização das pessoas portadoras do SARS-CoV2.

Na Espanha, os dados pessoais dos utilizadores de uma aplicação para telemóvel do governo da Comunidade Autónoma de Madrid iam inicialmente ser partilhados com as empresas privadas que ajudaram a desenvolver a aplicação, tais como a Google, Telefónica e Ferrovial, mas a aplicação foi posteriormente modificada para maior proteção da privacidade. No Reino Unido, o Guardian revelou que empresas tecnológicas estão a processar os dados confidenciais de doentes sem transparência e sem prestar contas pelas suas ações.

Estes são os exemplos mais inquietantes de uma tendência mais geral para a vigilância observada na Europa, que levanta preocupações quanto à sua compatibilidade com as normas de direitos humanos que regem a proteção de dados, e em particular com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

O Tribunal reconheceu que podem ser colocadas restrições aos direitos humanos e que a utilização de dados de caráter pessoal poderá ser necessária em certas situações de emergência. Contudo, o Tribunal sublinhou também que os Estados apenas podem recolher, utilizar e armazenar dados de caráter pessoal sensíveis em circunstâncias excepcionais e bem precisas, implementando simultaneamente salvaguardas jurídicas suficientes e um controlo independente. Os Estados devem ainda assegurar que as medidas adotadas têm um fundamento jurídico, que a sua necessidade para a respetiva finalidade se mantém e que são o menos intrusivas possível, levantando-as assim que desapareçam os motivos para a sua introdução.

A retenção de dados de telecomunicações é também estritamente regulada pela Convenção do Conselho da Europa para a proteção das pessoas relativamente ao tratamento automatizado de dados de caráter pessoal e pela legislação da UE, dentro dos limites claros fixados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia para as atividades dos Estados-membros da UE que infrinjam o princípio do respeito pela vida privada.

As tecnologias digitais podem contribuir para a resposta à pandemia, mas não podemos ceder à narrativa de que constituem uma panaceia. Só devemos aceitar a sua ajuda se forem utilizadas dentro do respeito das regras democráticas.

Se os governos não respeitarem estes limites jurídicos, arriscam-se a colocar em perigo o nosso sistema de proteção dos direitos humanos, sem necessariamente melhorarem a proteção da nossa saúde. Arriscam-se também a perder a confiança e o apoio da população, dos quais depende crucialmente a eficácia dos esforços governamentais para proteger a vida e a saúde das pessoas.

É pois encorajador ver que o Comité de Ministros do Conselho da Europa, no qual estão representados todos os 47 Estados-membros da organização, adotou em 22 de abril uma declaração na qual recorda que “as medidas para combater a doença e as suas consequências mais latas devem ser tomadas de harmonia com os princípios da Organização e com os compromissos assumidos pelos Estados-membros”. Este é um forte compromisso que os governos devem agora traduzir em atos.

Uma democracia não tem, na verdade, que sacrificar a nossa vida privada para proteger a nossa saúde. Pelo contrário, a saúde e a proteção de dados fazem ambas parte integrante de uma vida vivida com dignidade e segurança. Os governos podem e devem encontrar o equilíbrio certo entre estes dois imperativos e garantir que a tecnologia não fragilize os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito, mas sim que os reforce.

Para tal, há três linhas de ação principais a desenvolver:

Em primeiro lugar, os governos devem velar para que os dispositivos digitais sejam concebidos e utilizados de uma maneira compatível com as normas relativas ao respeito da vida privada e de proibição da discriminação. Estes dispositivos devem ser anónimos, encriptados e descentralizados, funcionar em código-fonte aberto e estar disponíveis para o maior número possível de pessoas, contribuindo assim para corrigir os desníveis em matéria digital que ainda persistem na Europa. A sua utilização deve ser voluntária, assentar num consentimento informado, limitar-se aos objetivos de proteção sanitária, ter um limite temporal claro e ser totalmente transparente. Os utilizadores devem poder excluir-se da utilização do dispositivo em qualquer momento, apagando todos os seus dados, e ter acesso a vias de recurso independentes e eficazes para contestar eventuais intrusões na sua vida privada.

Em segundo lugar, as leis que autorizam os Estados a recolher, utilizar e armazenar dados de caráter pessoal devem ser rigorosamente compatíveis com o direito à privacidade, nos termos da sua proteção nas constituições nacionais e na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Em terceiro lugar, as iniciativas governamentais devem ser submetidas a um escrutínio independente. Neste período em que o medo da doença nos faz, compreensivelmente, aceitar mais facilmente medidas intrusivas, é ainda mais crucial que seja exercida uma supervisão rigorosa por órgãos competentes e independentes, capazes de funcionar fora de um modo de emergência. Isto exige controlo judiciário e responsabilização, assim como monitorização pelo parlamento e pelas instituições nacionais de direitos humanos. No mínimo, autoridades independentes encarregadas da proteção de dados devem testar e aprovar os dispositivos tecnológicos antes que estes sejam utilizados pelas autoridades estatais e os seus parceiros.

Uma crise de saúde pública é uma ameaça real que exige uma resposta eficaz. Contudo, medidas de vigilância que passam por cima dos direitos humanos e do Estado de direito não são uma solução democrática.